“Eu gostaria simplesmente que isso fosse uma conversa e que
não fosse uma coisa chata. A pior coisa é falar com um escritor que se leva
muito a sério. Eu só me levo a sério quando estou trabalhando como escritor.
Antes e depois eu só quero ser feliz e encontrar pessoas com quem eu posso
trocar ideias. É isso que eu vim fazer aqui hoje”, anunciou o escritor
moçambicano Mia Couto na manhã de sexta-feira, 16 de junho, ao iniciar sua
conversa, promovida pelo Projeto Enlivrescer, com os estudantes dos 8º e dos 9º
anos do Ensino Fundamental – Anos Finais no Auditório 1 do Colégio Farroupilha. Veja algumas fotos.
E assim foi feito. Animados com a presença do escritor, os
estudantes passaram a fazer perguntas a Mia Couto, que respondeu a todas com
muita simpatia, contando sobre suas obras e sua vida e arrancando muitos
sorrisos e aplausos da plateia. Antes, o autor foi recebido com a conto de sua autoria "O adeus da sombra", do livro "Estórias Abensonhadas" contado pela auxiliar de bibliotecária Tânia Jacques.
“Eu comecei a escrever porque eu não sabia
viver. Meus dois irmãos se divertiam, tinham namoradas e saíam à noite e eu era
muito fechado. Às vezes eu pensava que era tão feliz quanto eles porque eu
inventava um mundo, minhas namoradas, inventava ser feliz. E depois percebi que
eu tinha que ser feliz na vida também”, contou o autor, que disse escrever o
tempo todo: “Eu acho que escrever não é só aquele momento que a gente senta no
computador, na máquina de escrever ou pega o papel. Escrever é uma maneira de estar”.
Ao ser perguntado sobre um momento marcante de seu percurso
como escritor, ele não lembrou de um dos prêmios recebidos, mas de um lançamento
de “O gato e o escuro” em que um menino citou uma ideia do livro como se fosse
dele próprio: “[...] Eu olhei para o menino e perguntei ‘Tu tens medo do
escuro?’ e aí pela primeira vez o menino olhou para mim nos olhos e disse ‘Eu
tenho medo do escuro e tu?’ e eu disse ‘Sim, eu também tenho’. O menino já
tinha o livro autografado, mas voltou, colocou a mão no meu ombro para me
consolar e disse ‘Não tenhas medo. O medo só está naquilo que a gente inventa
estar’”.
O autor falou ainda sobre o fato de as pessoas e suas
histórias serem as suas inspirações para escrever, sobre não ter aprovado
totalmente as adaptações de seus livros para o cinema, e que o conto dele com
que mais se identifica é “A fogueira”, do livro “Vozes anoitecidas”: “Provavelmente
eu me identifico porque foi o único conto que escrevi do princípio ao fim sem rasuras,
sem emendas, simplesmente aconteceu. Mas não é porque eu gosto mais dele”.
Uma das estudantes disse notar nos livros do autor uma
saudade da infância e, ao falar sobre esse tempo marcado por histórias contadas
por seus pais, António Emílio Leite Couto contou como tornou-se Mia: “Eu tinha
dois ou três anos [...] e disse ‘Eu quero me chamar Mia’ e isso qualquer
criança diz, mas o que aconteceu na nossa casa foi que meus pais disseram ‘sim’”.
Ao contar uma história que o inspirou a ser escritor, Mia
Couto explicou a sua atitude de não usar a poltrona que estava preparada para
recebe-lo, mas pedir uma cadeira como a dos estudantes. “Uma coisa que me deu
um grande impulso para escrever foi uma atitude de um professor da escola
primária. Ele era um homem austero, de quase dois metros de altura e não tinha
uma relação muito próxima com os alunos. Mas um dia ele nos pediu para escrever
uma redação e no dia seguinte sentou-se em uma cadeira como a nossa disse que
também tinha feito o dever de casa. Ele escreveu como se fosse um aluno,
como se fosse um menino. O que ele escreveu chamava ‘As mãos de minha mãe’ e falava
sobre as mãos da mãe dele, e aquelas mãos, que eram mãos com marcas de vida, com
calos, eram as mãos da minha mãe. Eu pensei ‘eu escrevi essa história’, porque
o professor tinha escrito uma coisa que estava saindo de mim próprio. Ver
aquele professor que agora já não era um professor, mas se transformou em um
colega meu, que estava se colocando como quem diz ‘eu estou com vocês, eu sou
frágil, eu tenho dúvidas, eu tenho medos’ foi fundamental na minha vida, eu
quis ser escritor, eu quis ser professor, eu quis ser uma outra pessoa”.
Ao final da conversa, o autor manteve sua simpatia ao autografar livros trazidos pelos estudantes e tirar fotos com eles. “Foi muito incrível,
ele é brilhante, ele é uma pessoa muito interessante”, afirmou Bruna S., do 8º
ano C, que, hoje fã do escritor, disse ter conhecido as obras de Mia Couto no
colégio.
Sobre o autor
Mia Couto nasceu em
1955, na cidade de Beira, em Moçambique. É biólogo, jornalista, professor
universitário e autor de mais de trinta livros, entre prosa e poesia. Seu
romance Terra sonâmbula é considerado um dos doze melhores livros africanos do
século XX. Recebeu uma série de prêmios literários, entre eles o Camões em
2013, o mais prestigiado da língua portuguesa, e o Neustadt International Prize
em 2014. É membro correspondente da Academia Brasileira de Letras.
Enlivrescer
O Projeto
Enlivrescer é promovido por uma parceria entre a Biblioteca e o Laboratório de
Português e tem como objetivo aprofundar os estudos literários, por meio
de palestras, cursos, encontros e oficinas. Veja outras atividades promovidas
este ano:
- Turmas do 8º ano
participam de palestra do Enlivrescer
- Escritora Cíntia
Moscovich bate-papo com 8º ano
- Turmas do 8º ano relembram as horas
do conto na Biblioteca